EITA! DEEP BLUE GANHOU, E AGORA?!

Geber Ramalho
(Jornal do Comércio, 26/05/1997)

Máquinas que pensam

Recentemente, a IBM desenvolveu um supercomputador chamado "Deep Blue", e desafiou o melhor enxadrista humano de todos os tempos, o russo de 33 anos, Garry Kasparov (visitar www.chess.ibm.com para maiores detalhes). No ano passado, Kasparov ganhou o primeiro embate (4 a 2) mas, no começo deste mês, apesar de ter declarado estar bastante confiante na vitória, não teve jeito: deu Blue na cabeça (3,5 a 2,5). Mas não foi uma vitória fortuita. Na primeira partida, por exemplo, Deep Blue correu o risco de colocar o cavalo em F4 deixando vulnerável seu rei. A audiência soltou um "ooohhhh" e grandes enxadristas disseram coisas do tipo: "Blue parece estar pensando", "esta jogada é especial", etc.

Mas será mesmo que as máquinas podem pensar? Esta interrogação, que foi o título de um famoso artigo escrito em 1950 por Alan Turing, um dos pais da computação, parece ser mais atual do que nunca. É neste artigo que Turing propõe o teste (conhecido como "teste de Turing") no qual um juiz se comunica através de um teclado com duas entidades visualmente inacessíveis. O juiz deve descobrir qual dentre elas é o computador e qual é o ser humano. Esta foi uma maneira que Turing encontrou para se esquivar de dar uma definição explícita de "inteligência, e, ao mesmo tempo, reforçar seus argumentos contra a idéia de que as máquinas não poderiam pensar. Numa época de particular efervescência intelectual, envolvendo nomes como Shanon, McCullough, Simon, Wienner, von Neumann e o próprio Turing, acreditou-se seriamente que os computadores poderiam ser mais do que meras calculadoras, incapazes de resolver o menor problema para o qual não tivessem sido explicitamente programadas. Apostou-se que estas máquinas seriam capazes de, por exemplo, provar novos teoremas, escrever poemas e jogar xadrez. Sonho de cientistas malucos?

De lá para cá, viu-se o desenvolvimento da "inteligência artificial", ramo da computação cujo objetivo é justamente estudar técnicas que possibilitem a construção de programas capazes de resolver problemas complexos até hoje só enfrentados por seres humanos. A empreitada da inteligência artificial revelou-se muito mais difícil do que se imaginava. Tarefas banais como reconhecer o rosto de uma pessoa amiga ligeiramente modificado -seja por um corte ou pintura no cabelo, seja por uma barba- continuam sendo extremamente complicados para uma máquina. Entretanto, apesar de todas as dificuldades, foi possível produzir programas que realizam tarefas específicas envolvendo conhecimento de um domínio limitado. Por exemplo, existem programas que diagnosticam certas doenças com muito mais fiabilidade do que os médicos.

Deep Blue: centenas de microcomputadores para jogar xadrez

A menos de 50 anos do nascimento do primeiro computador, o ENIAC, Deep Blue vem "coroar" o esforço da pesquisa feita em computação e mostrar que o sonho dos seus fundadores é possível. Deep Blue é muito especial. Ele é computador de uma tonelada e meia que abriga centenas de microcomputadores trabalhando ao mesmo tempo (o que se chama de uma arquitetura "massivamente paralela"). Além disto, ele tem microprocessadores especialmente projetados para jogar xadrez, assim como um programa que contém conhecimentos de grandes mestres e uma base de dados contendo a descrição das partidas jogadas por enxadristas famosos nos últimos 100 anos. Mas Deep Blue tem sobretudo uma capacidade de cálculo monstruosa. Ele examina 200.000.000 de posições do tabuleiro por segundo e varre a "árvore das possíveis jogadas" em profundidade 16, chegando as vezes a 24 em alguns ramos, quando julga necessário.

O embate Deep Blue x Kasparov pode ser visto como um teste de Turing modificado, na medida em que se tenta responder indiretamente se as máquinas podem pensar ou não. Este grande feito da humanidade, que se superou criando uma máquina capaz de vencer o melhor dos homens em jogos de xadrez, deveria ser motivo de alegria para todos nós. Estamos de parabéns! Não que o xadrez seja o que de mais genial e útil saibamos fazer, mas ele é um ícone da intelectualidade de nossa raça. Entretanto, em vez de festa, percebe-se um mal-estar generalizado na imprensa e na Internet. Acontece que Kasparov se apresentou -sem nos pedir licença, pois há quem acredite que Deep Blue nos representa melhor- como o representante da espécie humana contra este monstrengo inanimado e sem sentimento, transcendência ou racionalidade. Sua derrota soou então como nossa.

Medos e interrogações sobre o impacto do avanço tecnológico

Perderemos o controle sobre a nossa criação e seremos dominados por ela? Este medo, largamente cultuado pela literatura ("1984") e pelo cinema ("Blade Runner", "2001, uma odisséia no espaço"), é infundado. Os programas atuais são burros e, como já foi salientado, só têm um bom desempenho em tarefas precisas. A maioria das tarefas diárias dos seres humanos está fora do alcance dos computadores pois envolvem bom senso e não têm objetivos formalmente bem definidos. E isto sem falar em colocar juntas todas as atividades que exercemos, o que gera necessariamente muitos conflitos. No xadrez, o objetivo é dar o xeque-mate e cada movimento pode ser avaliado com este intuito. Bater papo, saltando fugazmente de assunto em assunto, é um exemplo de comportamento que nem de longe pode ser simulado por uma máquina. Educar um filho é outro exemplo de tarefa complexa e mal definida. Deep Blue é um bamba no xadrez mas sua inteligência é limitada á esta tarefa. Ele é incapaz, por exemplo, de reconhecer visualmente uma peça ou de tecer comentários sobre o jogo.

As máquinas vão roubar nossos empregos? Esta é uma das questões mais delicadas do próximo milênio. Com a revolução industrial, a máquina veio substituir o trabalho "braçal" do homem. Agora, a máquina vai substituir parte da atividade intelectual do homem. Isto é inevitável. Assim sendo, vai ser preciso que a sociedade repense o lugar do trabalho na vida das pessoas dos pontso de vista quantitativo e qualitativo. Um século atrás nossos bisavós trabalhavam muito mais e em piores condições. O avanço tecnológico implica em maior produção e deve também implicar em menos trabalho, em mais lazer e em outras formas de trabalho (como em casa via Internet!). Nós teremos então de reaprender a trabalhar e a viver.

O mundo não vai ficar mais mecânico e sem sabor com estas máquinas espalhadas por aí? Como as máquinas supostamente não têm sentimento nem sensibilidade, pelo menos não nos nossos moldes, pode ser que o mundo fique mais chato. Tem gente que, por exemplo, acha mais simpático pagar o estacionamento a uma pessoa do que numa maquininha - o que pode aliás, não ser a opinião da pessoa que passa o dia inteiro recebendo tais pagamentos. Mas felizmente as máquinas vão também poder fazer arte. É isto mesmo. Você já pensou se compraria um quadro pintado por um computador? Ou dançaria no Galo da Madrugada um frevo improvisado ao vivo por um programa de computador? Ou ainda, assistiria um programa com um humorista cibernético entrevistando pessoas e outras máquinas? Já existem programas escrevendo romances e participando de exposições na Tate Gallery de New York. É claro que as máquinas estão aí muito mais para aumentar as possibilidades dos artistas na exploração de outras estéticas e modos de criação. Os sintetizadores, por exemplo, não vieram para substituir os instrumentos musicais convencionais e sim para expandir as fronteiras dos sons que podem ser produzidos. Do mesmo modo, as máquinas, justamente por não terem nenhuma "amarração cultural"(elas não cresceram ouvindo cantigas de roda, vendo Tom e Jerry, etc.) podem tomar a liberdade de criar coisas que nós não pudemos ou não tivemos coragem de fazer. Nós correremos o risco de gostar... e comprar.

Nossa condição de "seres superiores" vai ser questionada? Isto é indubitável. Estamos certamente às vésperas de uma revolução semelhante à que presenciamos quando Copérnico, confirmado por Galileu, disse que não éramos o centro do universo, ou quando Darwin explicou que éramos apenas mais uma espécie na longa lista dos sobreviventes da evolução, tendo inclusive um estreito parentesco com os macacos. As máquinas assumirão, cada vez mais, tarefas reservadas, até agora, a nós seres humanos. É verdade que se trata de uma "inteligência" diferente da nossa. A maneira como Deep Blue "pensa" não tem nada a ver com o raciocínio dos mestres enxadristas. Enquanto o primeiro usa um arsenal de cálculos para varrer o máximo de possibilidades de movimentos, o segundo tem mais senso de relevância e estuda somente partes do tabuleiro. Mas, o fato de possuírem uma "racionalidade" distinta não muda a realidade de que as máquinas vão "invadir a nossa praia". Elas poderão inclusive criar outras máquinas! É possível então que cheguemos à conclusão de que certas qualidades nossas, como o raciocínio ou a memória, não são tão brilhantes ou importantes como imaginávamos. Este golpe na nossa condição de Homo Sapiens pode nos dar uma nova compreensão ontológica. De fato, é na dimensão do ser que se questionar a essência, a natureza do homem, sobre aquilo que o torna diferente dos outros animais ou máquinas. Talvez descubramos que nossa capacidade de amar, de crer, de meditar, de nos divertir, de fazer livre e gratuitamente nossas ações, seja aquilo que nos dá um lugar particular no universo.

Geber Ramalho, 31, é doutor em Inteligência Artificial pela Universidade de Paris VI e professor do Departamento de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (glr@di.ufpe.br).